As Aventuras de Nando & Pezão

“Me Perdoa, Margareth”

Capítulo 2 – Uma Dica

Se lá da rua o cheiro da comida já estava maravilhoso, imaginem na cozinha!

A mesa dos velhinhos estava mais farta do que todas as ceias de Natal e Ano Novo que eu já participei em toda a minha vida.

Arroz, feijão, macarronada, bifes acebolados (eu não disse?), frango assado, batatas fritas, mandioca frita, salada com alface, tomate, brócolis e uns outros negócios verdes que eu não sei o nome.

Não sou fã de saladas.

Meus olhos foram atraídos quase que magneticamente pelos bifes no centro da mesa.  Faz tanto tempo que eu não como um bom bife que nem me importaria se não tivesse mais nada, mas tinha … e como tinha! Um verdadeiro banquete.

— Fiquem à vontade, meninos  — disse Dona Mirtes, entregando um prato para mim e outro para o Pezão.

— Muito obrigado — falei. — Acho que eu nunca vi tanta comida assim.  Estão esperando mais alguém para o almoço?

Era tanta comida que eu só pude deduzir que ele estavam esperando a visita dos filhos, netos e bisnetos.

Dona Mirtes abriu um largo sorriso, e respondeu:

— Não, não, só nós mesmo. Normalmente não faço tanta comida assim — ela olhou afetuosamente para a neta. —, mas como estamos com uma visita mais do que especial, o cardápio tinha que ser especial.

— Ah, vovó, a senhora é demais!

— A Bel é nossa neta favorita  — disse a velha olhando para mim. — Ela é linda, você não acha?

— Vó!  — a garota ficou sem graça.

— Ela é sim — falei. —  E muito parecida com a senhora  — na verdade só se pareciam no azul dos olhos, mas eu quis fazer um agrado para a velhinha.

— Posso atacar?  — disse Pezão, quebrando a rasgação de seda.

— Atacar?  — resmungou o velho, enquanto pegava um prato. — É assim que vocês jovens falam hoje em dia à mesa?  Mundo perdido mesmo. Se eu dissesse um absurdo desse na frente do meu pai ele me arrancava os olhos e fritava junto com os ovos.

— Para de implicância, Seu Nori!  — repreendeu-lhe Dona Mirtes. E olhou para o Pezão, dizendo: — Sirva-se à vontade … Pezão. Não esqueci seu apelido, viu?  Ah, mas depois quero saber seu nome, tudo bem?

Pezão fez que sim com a cabeça.  Em seguida ele se serviu de arroz e feijão e um punhado de batatas fritas. Seu prato favorito. Antes de se sentar ele disse:

— Meu nome é Maurício, mas até a minha mãe já parou de me chamar assim. Para falar a verdade eu só me lembro do meu nome quando preciso apresentar algum documento.

Todos rimos, exceto o velho, é claro.  Do que será que ele ri?  Será que assassinamos sua única fonte de alegria? Será que ele só se divertia com o pobre cão-múmia?


Peguei de tudo um pouco, com exceção das coisas verdes que eu não sei o nome.  Fiquei com vergonha de perguntar o que eram, então achei melhor simplesmente não comê-los. Os bifes eu peguei quase todos.  Estavam estupendamente acebolados e cheirosos. É hoje que eu tiro a barriga da miséria!

A mesa era redonda e bem grande. Estávamos sentados na seguinte disposição, em sentido horário: eu, Pezão, Mirabel, Seu Nori e Dona Mirtes.

Por incrível que pareça, o maior prato foi o da Mirabel, bem ao estilo pedreiro mesmo, eu quase não pude ver seu rosto lindo atrás dele.  Bom, é claro que eu exagerei um pouco, mas o prato dela era realmente grande.  Fiquei imaginando como uma garota tão gostosa poderia comer um prato daquele tamanho. Aposto que é uma boa genética, pois ela não tem cara de quem frequenta academia.

— Notei que você não tirou os olhos do meu prato — disse Mirabel para mim. Nem tive tempo de me sentir envergonhado e pedir desculpas e ela falou novamente: — Eu como pra caramba.  Se tem uma coisa que eu gosto é comer.  Agora você entende o porquê de tanta comida.

— E a bichinha não engorda!  — disse Dona Mirtes. — Nisso ela puxou o pai.

— Aquele sempre foi teve uma carcaça de grilo  — resmungou Seu Nori, mordendo uma coxa de frango.

O velho só balançava a cabeça negativamente para tudo. Estava mega incomodado com a nossa presença.  Isso me chateava um pouco no começo, mas depois eu nem me importei mais.  Não fomos nós que nos oferecemos para o banquete, né?

Pezão parecia faminto, pois já estava indo para o terceiro prato.  Nunca o vi comer tanto.

— Não tem comida na tua casa?  — brinquei come ele.

Antes que ele dissesse alguma coisa, Dona Mirtes o defendeu:

— Deixa ele comer!  Isso mesmo, Pezão, sinta-se em sua casa.

— Só que não. Na minha casa nunca almoçamos juntos.

— Isso é triste.

Notei que Dona Mirtes e a neta trocavam olhares de vez em quando, e numa dessas trocas de olhares a velha fez um gesto com a cabeça na minha direção.  Não entendi muito bem o porquê, mas parecia que a velha estava querendo que a neta falasse algo para mim, ou de mim, sei lá.

Como a mesa ficara silenciosa de repente, resolvi puxar assunto com a netinha favorita de Dona Mirtes, afinal de contas precisaríamos de um certo entrosamento para realizarmos o enterro do Ronnie Von.

— Você mora aqui pelas redondezas, Mirabel?

Ela terminou de mastigar, depois respondeu:

— Moro em Taubaté com o meu pai e minha irmã caçula.  Pode me chamar só de Bel.

— OK. Só-de-Bel.

Ela riu.

— Você tem namorada?  — perguntou a velha para mim. Fui pego de surpresa. Até engasguei com um pedaço de carne.

A neta olhou torto para a avó. Será que era isso que a velha queria que a Bel perguntasse para mim? Respondi para Dona Mirtes, olhando por cima do ombro.

— Não tenho namorada.

Notei o velho arregalando os olhos para mim, e disse:

— Mentira dele!

— Por que mentira?  — falei, franzindo a testa. Comeu cocô, véio?

— E a moça do Rio de Janeiro? — acusou ele. — Uma toda posuda.  Eu nunca entendi como uma moça bonita daquela podia namorar um moleque como você.

Meu, como assim?  Como ele sabe da Polly?  Não entendi nada.

— O senhor conhece a Polly?  — falei, começando a soar irritado. Notei que a Bel estava com os olhos fixos em mim, então eu completei: — Ela é minha ex-namorada. — olhei na direção do velho outra vez: — E como sabe que ela mora no Rio?

— Pela placa do carro. Ela insistia em deixá-lo estacionado bem na frente da minha garagem.

— Mas o senhor não tem carro mesmo  — falei, agora bem irritado.

— E daí?  Eu poderia ter. Por que ela não guardava na sua garagem?

— Talvez porque o meu carro esteja lá e não caiba mais nada além dele.

— Mas isso não era problema meu, não é?

Dona Mirtes puxou a orelha do velho. Eu não teria acreditado se não tivesse visto com os meus próprios olhos. Foi hilário!  Pezão estava tão concentrado no seu iPhone que nem viu nada.  Perdeu.

— Que vergonha! — disse Dona Mirtes, ainda segurando a orelha do marido. —  Bisbilhotando a vida dos vizinhos, Seu Nori!  E que história foi aquela de chamar a namorada do nosso convidado de “toda posuda”?

— Ex-namorada  — eu a corrigi.

Dona Mirtes soltou a orelha dele.  O velho estava mais vermelho que um pimentão.

— Eu não estava bisbilhotando nada — disse ele, por fim. — O carro ficava parado na frente da minha casa, eu tinha todo o direito de saber de quem era e de onde vinha.  Um carrão novinho daquele, eu pensei que fosse de algum traficante do bairro.  Quando vi a placa do Rio de Janeiro, aí minhas suspeitas aumentaram.

Bel ria de tudo, balançando a cabeça.

De repente nossos olhares de cruzaram. Não dissemos nada, apenas esperamos a briga dos velhinhos terminar. Quando a poeira abaixou, ela disse para mim:

— Então sua namorada morava lá no Rio?  E tinha carrão de traficante?

— Viu só?  Não mexa comigo. Já falei que ela é a neta favorita de Pablo Escobar?

A Bel soltou uma gargalhada, mostrando todos os seus dentes.  Ela é linda, mas sorrindo fica ainda mais.  Seus olhinhos semicerrados ficam uma graça, como uma japonesinha num festival de Cosplay.

De repente Dona Mirtes segurou a minha mão e me disse baixinho:

— A Bel também está solteirinha.

— Vó!

A garota ficou quase da cor das luzes dos seus cabelos.

— Falei alguma mentira?  — e a velha ria e ria.

Realmente os opostos se atraem.  A velha ri de tudo. O velho não ri de nada.

— Tec-nica-men-te falando eu não estou solteira  — disse Bel. — Estamos dando um tempo.

Droga!  A gostosa tem namorado.

— Ah, é?  — falei, demonstrando interesse em saber mais a respeito. — E seu namorado também é de Taubatexas? (para quem não é daqui, temos o costume de chamar a cidade de Taubaté de Taubatexas).

— Não. Olha só que coincidência: ele também é do Rio.

Caraca!  Mundo pequeno sem porteira.

— Não me diga!  Muita coincidência mesmo.

— Vocês também se conheceram pela Internet?

— Não. Quando eu a conheci, ela ainda morava aqui.

— Hummm, legal.

Silêncio.

Pezão não tirava os olhos do celular.  Parecia trocar mensagens com alguém, provavelmente Margareth.  Mas como a cara dele não estava muito boa, acho que a conversa não estava indo bem.

De repente o velho disse, bem zangado:

— Vocês já terminaram de comer?  Agora podem ir para suas casas, não acham?  Nós temos mais o que fazer.

— Quieto!  — disse a velha, ameaçando puxar sua orelha novamente. — Deixe as crianças conversarem.  Se não quer ouvir, vá dormir no sofá.

E ele foi mesmo, mas antes lançou um olhar feroz para o Pezão e depois para mim.

Dona Mirtes se levantou em seguida, e disse com sua voz carinhosa novamente:

— Alguém vai comer mais?

— Olha  — falei. — , se tivesse espaço eu até comeria, mas não cabe nem mais uma ervilha.  Nunca comi uma comida tão gostosa, Dona Mirtes.

Ela riu (novidade!) feito uma hiena depois do coito com a hiena mais gostosa do bando.

— A senhora não quer trampar de cozinheira lá em casa? — disse Pezão, sem tirar os olhos do celular. — Minha mãe paga muito bem.

— Sério?  — os olhinhos cansados da velha até brilharam. — Olha que eu topo!

— Faz uma marmitinha para eu apresentar o produto para a mama.  Quando ela provar, vai ficar de quatro.

Eu nunca vi o Pezão elogiar ninguém dessa forma.  A velhinha conseguiu um verdadeiro milagre.

— Vocês são uns fofos  — ela disse, e começou a recolher os pratos. Enquanto fazia isso não tirava os olhos de mim e da neta, como se esperasse novas histórias de ambos.

Não quis decepcioná-la. Perguntei para a Bel:

— Então você conheceu o namorado pela Internet?

— Pois é. Nós participávamos do mesmo fórum. Conversa vai, conversa vem …

A avó a interrompeu:

— Esse negócio de conhecer namorado pela Internet não me cheira nada bem.

— Também acho ridículo — disse Pezão, com a mão direita levantada, como um aluno na hora da chamada. — Como diz o Faustão: “Quem sabe faz ao vivo”.

— Adorei, Pezão! — disse a velhinha, batendo palmas para ele. Pensei que ela ia correr até ele e fazer um “toca aqui”, tamanha a empolgação. — E você, querido, tem namorada?

— Tem uma pergunta mais fácil, vó?

— Seu amigo é uma graça — disse Dona Mirtes para mim. — Ele me chamou de vó!

— Ele é um amorzinho mesmo — falei. — É o cuti-cuti da mamãe.

Pezão olhou pra mim e eu aposto que mostrou aquele dedo para mim mentalmente.  Só não mostrou de verdade porque a velhinha o observava com ternura.

— Problemas com a namorada?  — disse a Bel para ele. —  Você não largou este celular durante quase todo o almoço, sempre com uma cara aborrecida.

— Sim, eu pisei na bola com ela.

— E agora ela não atende os seus telefonemas. Só responde pelo WhatsApp, né?

Pezão fez que sim com a cabeça, meio tristonho.

— Dizem que os homens são previsíveis — explicou a Bel. — , mas nós mulheres também  — ela riu. — Eu também faço isso com o meu namorado quando estou zangada com ele. Geralmente mantenho esta estratégia por uns 3 ou 4 dias.

— E quantos dias você faria isso se achasse uma foto dele no Facebook com a língua dentro do ouvido de outra garota?  — perguntei.

Pezão me olhou puto, mas depois olhou para ela, esperando a resposta.

— Bom — disse ela. — , aí nem WhatsApp.  Eu nunca mais olharia na cara dele.

— Fodeu.

— Sem palavrões na minha cozinha!  — disse Dona Mirtes, de costas para nós, lavando os pratos.

— Sua namorada mora longe? — perguntou a Bel.

— Minas Gerais — disse ele, com um olhar distante.

— Meu, de boa, namoro à distância não funfa!

Putz, quando ela disse isso eu quase caí da cadeira.  Foi exatamente isso que eu disse para vocês, não foi?

— Concordo totalmente contigo — falei. — Namoro à distância é um saco!

Pezão repetiu o gesto da mão levantada.  Depois largou o celular sobre a mesa, bem irritado. E disse:

— Ela é uma filha da puta de uma ingrata!

— Sem palavrões! — repetiu Dona Mirtes. — Calma, querido, não fique assim.

Parece que a velhinha gostou mesmo dele.

— A Margareth se esqueceu de todas as coisas boas que eu fiz, porra!

Dona Mirtes pousou a cabeça por cima do ombro e olhou feio para ele.

— Desculpa, vó. Saiu sem querer querendo.


E o improvável aconteceu: Pezão desabou num choro convulsivo que eu nunca vira antes.  Caraca, parecia um ganso com resfriado. Nunca vi nenhum ser humano chorar daquela maneira. Foi bizarro.

Em outras oportunidades eu teria achado aquilo hilário, mas a verdade é que eu fiquei com pena dele.  Acho que todos nós ali na cozinha ficamos.  Dona Mirtes foi a primeira a se aproximar dele e fazer um carinho nos seus cabelos. E disse:

— Calma, ela vai se lembrar do menino bonzinho que você é.

Ah, tá! Segurei para não rir.  Se Dona Mirtes soubesse de 1 por cento do que esta peste já aprontou em seu curto período de vida  â€¦ Bom, nós sabemos, né?

E Pezão continuou chorando.  A velhinha preparou um copo de água com açúcar para ele.  Nosso amigo tomou o copo inteiro. Quando o choro diminuiu ele falou:

— Ela me acusa de não ser espontâneo — soluços. — , disse que eu nunca lhe fiz uma — soluços. — surpresa, que eu nunca fiz uma loucura.

— Então faça, caramba!  — disse Bel. — Você gosta dela?

— Muito.

— Então dê a ela o que ela quer.

— Mas o quê?

— Sei lá, quando foi a última vez que vocês se viram?

— Umas 3 semanas atrás, eu acho.

— Caraca, tudo isso?  E geralmente é você que vai pra lá ou ela que vem?

— Só ela que vem  — respondi por ele. — E depois ele não sabe o porquê dessas cobranças.

Bel arregalou os olhos, depois balançou a cabeça. Por fim, disse:

— Você nunca foi visitá-la, mané?

— Mas ela gosta de vir pra cá.  As amigas dela estão todas aqui.

Bel fez sinal para ele se calar.

— Inacreditável  — disse ela, irritada. — , vocês homens são todos iguais.  Eu ia te ajudar, mas agora eu nem sei se devo.  Você não gosta dela de verdade.

— Gosto sim, eu juro!

— Não, não gosta.  Se gostasse de verdade você entraria naquele seu carrinho cheirando a novo e pegaria a estrada agora mesmo.

— Mas, tipo, agora?

— Pra ontem, seu idiota!  Você não entendeu a dica que ela deu?

Pezão coçou o couro cabeludo por um instante.

— Claro que não entendeu, né? Vocês não sabem ler nas entrelinhas.

Pezão ficou ainda mais confuso, com certeza tentando entender o que significa “entrelinhas”.

— Levanta a bunda daí e vai atrás do seu amor, de preferência com um buquê de flores mais caro que você encontrar e uma caixa de bombons finos.

— Mas eu nem sei direito onde fica a cidade dela.

Bel fez um gesto como se fosse enforcá-lo. Eu rachei de rir.

— E aquele seu carro não tem GPS, mané?  — ela disse, bem irritada.

— Tem, mas eu não sei mexer naquilo.

Bel olhou para mim, mas apontando o dedo para o Pezão, e disse:

— Esse cara tá de brincadeira comigo, né?

— Pior que não — falei.

A neta da Dona Mirtes puxou o ar pelo nariz e depois o devolveu lentamente pela boca, olhou fixamente nos olhos do Pezão e disse:

— Vou te ajudar a recuperar a namorada.  Se é que ela existe mesmo, pois estou achando quase impossível que você seja capaz de namorar alguém além de uma boneca inflável.

— Bel! — disse Dona Mirtes, horrorizada. — Pobrezinho, não fale assim com ele.

Bel se levantou e puxou o Pezão da cadeira, fazendo com que ele se levantasse também.

— Você sabe o nome da cidade onde ela mora, pelo menos?

— É alguma coisa … Mirim.

— Você não existe.

Ela pegou o celular do Pezão de cima da mesa e digitou alguma coisa, com uma habilidade incrível. Segundos depois ela disse:

— Cachoeira Mirim, é isso?

— Caraca, é isso mesmo! Cachoeira Mirim! Como você descobriu?

— Nunca ouviu falar no Google, mané?

Nunca vi o Pezão tão sem graça.

— Vem, vou configurar o seu GPS para te levar até lá.

— E se ela não quiser falar comigo?

— Confie em mim, ela vai falar com você.  Melhor, vocês vão conhecer o melhor motel da cidade ainda hoje.

— O quê?  Você cheirou cola no almoço, foi?

— Quer apostar comigo? — ela estendeu a mão para selar a aposta. — Milzinho, igual àquele que você deu para o meu vô.

Pezão nem pensou duas vezes. Apertou a mão da garota, dizendo:

— Você é a gostosa mais maluca que eu já conheci.

— Você ainda não viu nada.

Não é por acaso que ela é a neta favorita da Dona Mirtes. Ela é demais!


Quando passamos pela sala o velho não estava dormindo no sofá, como imaginávamos.  Ele estava no quintal, cobrindo um buraco com terra.  Sim, ele mesmo enterrou o cão-múmia, Ronnie Von, ou simplesmente Ron-Ron para os chegados.

Dona Mirtes ficou possessa ao ver a zona que o marido aprontou no seu lindo jardim.

— Seu Nori, eu não acredito que você matou as minhas tulipas para poder enterrar aquele cachorro velho e estúpido?

— Pelo menos as tulipas a gente pode plantar novamente ...

Isso a desconcertou.  Ela não disse mais nada, mas ainda havia ódio em seus olhos.

Quando descíamos as escadas, não resisti e olhei para o requebrar da bunda da Bel. Não resisti, qualquer homem (ou lésbica) que se preze teria admirado.

De repente ela olhou para trás e por muito pouco não me deu um flagrante.

Ah, como eu desejei por mais degraus naquela maldita escada.


Como prometido, ela configurou o GPS do carro do Pezão, tão rápido que eu fiquei com vergonha da nossa estupidez.  Uma vez eu configurei aquilo e fomos parar quase na casa do caralho, bem ao lado de onde Judas perdeu as pregas.

A distância calculada entre o ponto de partida e Cachoeira Mirim foi de 258 km. Tempo estimado de 3 horas e 42 minutos de viagem. Lógico, isso com tempo bom e pouco tráfego na estrada.

Pezão já estava com o sinto de segurança e se preparava para se despedir de nós, quando algo inesperado aconteceu. Bel, toda empolgada, virou-se para nós e disse:

— Vou só dar um tchau para a vovó e o vovô e já volto. Ah, e pegar os meus remédios também.

E saiu correndo.  Ela subiu a escada de dois em dois degraus.  Olhei para a sua bunda outra vez.  Não resisti.  Dessa vez ela não olhou para trás.

— É o que eu estou pensando?  — falei, franzindo a testa.

— Eu tô pensando que aquele shortinho poderia ser ainda mais curto.

— Claro, isso também.  Mas não foi o que eu quis dizer … Ela acha que vai com você até Minas Gerais.

— Sério? Não viaja … Se eu chegar lá com uma gostosa do meu lado a Margareth nunca mais olha na minha cara.

E lá vinha a gostosa descendo a escada, toda sorrisos. Usava a mesma camiseta, mas trocou o shorts por uma calça jeans desbotada com rasgos nos joelhos. No lugar da rasteirinha de onça ela calçou um tênis roxo e verde-limão (quase nada cheguei). Apesar do coque engraçado que fez nos cabelos, ela conseguiu ficar ainda mais atraente. Uau! Segurava uma sacola de supermercado numa das mãos e trazia pendurada no ombro uma bolsinha preta de couro (já viu uma garota sair de casa sem sua bolsa?)

Foi engraçado, ela já chegou se jogando no banco do carona. Ajeitou a sacola de plástico entre as pernas, ergueu os olhos para mim e disse:

— Tá esperando o quê, mané? Você também vai.

Mas é lógico que eu vou!

— Vou — falei calmamente. — , mas você pegou o meu lugar. Então vaza. Xispa. Evapora. Escafede.

— OK, OK, nossa!

— Ah, outra coisa: odeio que me chamem de mané.

Ela ficou me olhando por cima dos óculos, segurando para não rir. E finalmente saiu do meu lugar.

Preciso dizer que nós olhamos para o traseiro dela outra vez quando ela pulou para banco de trás? Desnecessário, né?

Sentei no banco do carona. Meu lugar. Porra, acabou de chegar e já quer sentar na janelinha? Não é assim não, fia!

Espetei o meu pen drive no som do carro e coloquei minha pasta de rock para tocar. Para começarmos a viagem com o pé direito coloquei a música Immigrant Song, do Led Zeppelin.

— Aí sim  — disse Bel, balançando a cabeça com o primeiro acorde da música.

Pezão saiu cantando os pneus novinhos do seu carro novinho. Filho da mãe sortudo.

Dessa vez não atropelamos nenhum cão-múmia.

Minas Gerais, aqui vamos nós, uai, sô!