“O Pai da Magareth”
CapÃtulo 16 – Uma Estranha FamÃlia
— Mostra suas pernas! — pedi para Margareth. Ela não gostou muito da idéia, mas ao ver que o carro ia passar por nós, atendeu ao meu pedido.
O motorista da Variant encostou o carro imediatamente.
— Sempre funciona — completei, com sorriso nos lábios.
—Â E se o motorista fosse uma bichona?
—Â Uma bichona jamais dirigiria uma Variant laranja.
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Nós ainda caminhávamos até o carro quando a porta do carona abriu. Pensei que despencaria no asfalto; aquilo não via um óleo há muito tempo. Em seguida a outra porta também foi aberta e o motorista desceu do carro. O cara era tão feio e velho quanto sua Variant. Sua careca brilhava sob o sol escaldante. Usava um par de óculos escuros bem estiloso, tipo Matrix. Seu nariz era amassado para um dos lados, como se tivesse levado um soco e congelado naquela posição. Por fim ele tirou os óculos, olhou para mim e disse:
— O que vocês fazem por aqui?
— Estamos meio perdidos — falei, tapando o sol que batia diretamente nos meus olhos.
— Pouso Alegre é perto daqui? — disse Margareth, mancando e fazendo caretas.
— Mais ou menos. Posso levá-los até lá.
— Jura? — Margareth abriu um sorrisão, algo que eu não via desde a sua queda. — O senhor é um anjo que caiu do céu!
— Sou isso não. Agora entrem, o sol está muito quente.
E estava mesmo, daria para fritar um ovo no asfalto. Sentimos um alÃvio enorme ao entrarmos no carro. Mesmo desconfortável era dez mil vezes melhor que enfrentar o calor lá fora.
O gordo peçonhento não tirava as mãos da pança, parecia sentir muitas cólicas. Fazia uma careta mais engraçada que a outra. Só espero que ele não faça nenhuma bobagem dentro da Variant do velho. Ele e a prima ficaram no banco traseiro, sentei-me ao lado do careca esquisito. Foram necessárias dez tentativas para o motor pegar no tranco.
— A moça está mancando bastante.
— Torci o tornozelo. E por favor, não precisa me chamar de moça. Meu nome é Margareth.
—Â Bonito nome.
—Â Obrigada. Que indelicadeza a nossa, nem perguntamos o seu nome.
— Porrah — respondeu o careca. Todos ficamos espantados dentro do carro.
— Não precisava xingar — disse o gordo. — Ela só perguntou o seu nome, cara!
— Não xinguei! Meu nome é Porrah, mas com H no final. É um nome bastante comum no sul da Turquia.
— Ah, fala sério!
— É sério. É o nome do meu filho caçula também.
— Porrah Júnior? — perguntei, tentando manter a seriedade.
—Â Isso mesmo.
Com exceção do careca, começamos a rir. Reconheço que foi falta de educação da nossa parte, mas não deu para evitar, né?
De repente bateu uma marola insuportável dentro do carro. Puta que pariu, tenho a certeza de que o gordo peidou lá atrás.Â
— O senhor tem quantos filhos? — perguntou Margareth.
— Sete, mas uma já morreu.
—Â Nossa, que triste.
— Pois é, triste demais da conta.
— Sua esposa ainda é viva, né?
— Sim, muito viva, é a mulher mais linda do universo todo.
Se for tão linda quanto o marido, a pobre coitada deve ser uma mistura de Dercy Gonçalves com Ruth Romcy (a velha que fazia as pegadinhas do Silvio Santos).
— Desculpa interromper — falei. — , mas ainda falta muito para chegarmos em Pouso Alegre?
— Tem chão ainda.
Que pergunta besta foi a minha, é claro que ainda falta muito! Na velocidade em que estamos indo, até uma carroça puxada por burros pernetas iria mais depressa.
Para ajudar, acho que o gordo peidou outra vez.
Quase uma hora depois o velho saiu da estrada e pegou um caminho de terra vermelha e cascalho. Achei aquilo bem suspeito. Lá atrás, Margareth e o primo roncavam.
— Este caminho vai nos levar até Pouso Alegre? — perguntei, espantado.
— Na verdade já estamos em Pouso Alegre. Mas preciso dar uma passadinha em casa antes.
Puta merda, já assisti uns oito filmes de terror que começaram exatamente assim. Será que o velho é um psicopata?
— Será que é uma boa ideia? Estamos um pouco atrasados e ...
— A garota precisa de cuidados médicos no tornozelo, coitadinha. E o gordinho ... — ele abaixou o tom de voz. — ... deve estar todo cagado.
Comecei a rir feito uma hiena comemorando um pênalti perdido pelo time adversário. Ri tão alto que acordei os dois lá atrás.
— Já chegamos? — perguntou Margareth, bocejando.
— Ainda não, querida. Antes vocês farão uma visitinha lá em casa.
Alguns minutos depois nós paramos. O lugar parecia uma fazenda antiga, do tipo que a gente vê nos livros de história, da época dos escravos. Palmeiras muito bonitas circundavam um velho casarão. O cenário era de encher os olhos.
— Chegamos — disse o velho.
— Aquela é a sua casa? — perguntei, apontando para o casarão enorme.
— Sim, é humilde, mas pelo menos é minha.
— Humilde??? Se aquilo é humilde eu moro na favela.
O careca riu.
— Vocês jovens são tão exagerados.
Ao descermos do carro, um cão enorme veio correndo em nossa direção. Voltei imediatamente para dentro do carro, é claro. Margareth deu um grito e fez o mesmo.
— Não precisam ter medo, ele não morde — disse o careca, acariciando a cabeça do cachorro. Sou péssimo para identificar raça, mas creio que seja um Pastor Alemão.
Dentro do carro estava um cheiro insuportável.
— Você cagou na calça, né? — falei para o gordo. Ele estava com uma cara terrÃvel. Parecia um peru na véspera de Natal.
—Â Acho que sim.
Margareth pulou para bem longe dele.
— Credo, Tim!!! Então era você que estava cheirando mal?
Ele balançou a cabeça positivamente, todo envergonhado.
—Â Eca!!!
— Venham, ele não vai morder vocês! — repetiu o velho, lá fora.
Saà do carro, principalmente por causa do cheiro horrÃvel que estava lá dentro. Margareth veio logo em seguida. O gordo foi o último, o coitado não sabia onde enfiar a cara de tanta vergonha. Assim que ele colocou um pé fora do carro, a merda começou a escorrer por sua perna. Deu vontade de rir, mas achei sacanagem. O velho aproximou-se de mim e sussurrou no meu ouvido:
— Não te falei? — depois sorriu para o gordo e disse: — Vem comigo, vamos dar um jeito nisso. Não precisa ficar com vergonha, isso acontece com qualquer um. O gordinho não disse uma palavra.
O careca é gente boa. Eu só não entendi uma coisa até agora: se ele mora numa fazenda tão grande, como pode andar num carro tão velho e podre como aquele? Vai ter mau gosto assim lá na casa do caralho!
— Venham — disse ele para nós. — Quero que vocês conheçam minha famÃlia.
O gordo tomou um banho de mangueira antes. Nem o cachorro teve coragem de ficar perto.
Entramos no casarão. O lugar era tão belo por dentro quanto era por fora. A decoração era bem antiga, senti como se estivesse visitando um museu do inÃcio do século.
— Nunca vi nada tão lindo em toda a minha vida — disse Margareth, boquiaberta.
— Muito obrigado — respondeu o Sr. Porrah.
— O senhor deve ser muito rico — disse o gordo.
De repente surgiu um casal de crianças. Estavam tão bem vestidas que nos sentimos uns favelados. A menininha usava um vestido rosa, pronta para uma festa de gala. O menino usava um terninho e uma gravata borboleta. Estranho ver crianças vestidas assim, principalmente num dia insuportavelmente quente como este.
— Sou rico sim — disse o velho, orgulhoso — , mas pela famÃlia maravilhosa que eu tenho.
As crianças vieram correndo lhe abraçar.
— Conseguiu, papai? — disse a menina. Caralho, menina? Sua voz é de homem! Poucas vezes vi algo tão esquisito.
— Não, Luci, hoje não.
— Mas o senhor foi até o final da estrada? — disse o menino. Agora fiquei ainda mais abismado. Ele tem a voz da Fátima Bernardes, do Jornal Nacional. Margareth também notara algo estranho, pois sua cara era de total espanto. O gordo ria baixinho.
— Sim, fui até o final, Ferdnand.
— Ferdnand? — disse eu para o garoto. — Somos quase xarás, meu nome é Fernando.
— Prefiro Ferdnand — respondeu ele, com o nariz empinado. Putz! Isso que dá a gente querer ser gentil com criança. E a voz é realmente idêntica a da Fátima. Se ele disser "Boa Noite" a mulherada vai pensar que está na hora da Novela das Oito.
A menina não parava de olhar para o gordo. Será que gamou?
— Você está bem acima do seu peso ideal — disse ela, com aquela voz de trovão.
Comecei a rir. A menina olhou feio para mim e disse:
— Está rindo do quê? — sua voz grossa é ameaçadora. — Contei alguma anedota?
Fiquei sem graça pra caralho. E um pouco assustado, confesso.
— Luci, não seja deselegante com a visita!
E a guria saiu batendo os pés, bem irritada. O irmão foi atrás dela, com cara de poucos amigos também. Eu, hein! Nunca vi crianças tão estranhas em toda a minha vida. Deu até saudade dos meus irmãos pentelhos.
O velho olhou para o gordinho e disse:
— Não ligue para o que a minha filha disse, tá? Ela anda meio amarga ultimamente.
— Tudo bem, já estou acostumado. Pelo menos ela não me chamou de Faustão ou Pequeno Hipopótamo.
— Vou preparar um banho e roupas limpas para você. O que acha?
— Eu acho que vou começar a chamá-lo de papai.
O velho riu feito uma criança. Depois olhou para nós.
— Sintam-se em casa. Vou preparar um banho para o garoto e chamar minha esposa para conhecê-los.
Margareth e eu ficamos esperando na sala. Ela andava de um lado para o outro, embasbacada com tudo. Confesso que eu também estava impressionado, mas não tanto quanto. Seus olhos até brilhavam.
— Você chegou a imaginar que ele morasse num lugar como este? — disse ela, agora parada no centro da sala, com as mãos na cintura.
— Os verdadeiros donos devem estar de férias; aposto que ele é só o caseiro.
— Será? Não pode ser. E as crianças? Não viu como elas o recepcionaram?
— E daÃ? Caseiros também fazem filhos.
— Sim, mas caseiros não vestem os filhos com terninhos e vestidos carÃssimos.
— Sei lá, quem garante que as roupas são deles? Podem ser dos verdadeiros donos.
— Tudo bem. Mas por que ele faria este teatro todo? Não faz sentido.
— Eu poderia dizer que é para te impressionar, mas não faria sentido ele dizer que tem esposa.
— Viu só? Não faz sentido. Isso aqui é dele mesmo.
—Â Acachapante.
Ela ficou me olhando, prestes a cair na gargalhada, mas apareceu alguém e ela segurou.
— Olá — disse Margareth.
Olhei para trás e vi uma garota de maiô. Linda, devo admitir, mas muito novinha. Eu arriscaria uns 15 aninhos. Não dá pra saber se é loira ou morena, pois seus cabelos estão enrolados numa toalha. Os olhos da guria são grandes e de um verde tão lindo que fiquei hipnotizado por alguns segundos.
— Caralho, quem é você? — disse a garota, irritada. Foi tão esquisito ouvir aquele palavrão sair da boca dela. Ela parece uma princesinha dos filmes Disney.
— Meu nome é Margareth e este é o ...
— Não me interessa, sua vadia! O que você quer, porra?
Putz! De princesinha a guria só tem o rosto mesmo. Que boquinha suja.
— Do que você me chamou? — retrucou Margareth.
— Chamei de vadia, e daÃ? Vai encarar, biscate?
Xiiiiiiiiiiii, vai dar merda isso aqui.
— Calma — sussurrei para Margareth. — Senta aqui do meu lado.
A estressadinha deu a volta no sofá e ficou encarando a Margareth, bufando feito um touro jurando morte ao toureiro. Será que estou invisÃvel? Ela não olhou para mim até agora.
— O que você pensa que está fazendo aqui, cacete?
— Calma, guria, baixa a bola! — falei.
E ela finalmente olhou para mim. Pode ser impressão minha, mas eu acho que só agora ela percebeu a minha presença.
— Nossa, de onde você saiu? — seu tom de voz mudou totalmente. Nunca ouvi um som tão doce em toda a minha vida. Juro, nem parecia a mesma garota.
— De lugar algum — e dei uma risadinha. — Eu já estava aqui quando você entrou, mas você nem me ...
—Â Qual o seu nome?
Vocês vão pensar que estou inventando ou aumentado as coisas, mas eu posso jurar que os olhinhos dela brilharam.
—Â Pode me chamar de Nando.
Ela tirou a toalha da cabeça e soltou os cabelos. Eram loiros e compridos, quase encostaram no chão. A menina ficou ainda mais bonita.
— Muito prazer — disse ela, beijando o meu rosto nas duas faces. — O meu é Ximba.
— Ximba? — disse Margareth. — Que nome diferente.
— Diferente por quê, sua puta? — cacete, a voz da guria mudou novamente. Imaginem a voz da guria do filme O Exorcista nas cenas de possessão. Imaginaram? Então, não tem absolutamente nada a ver, mas seria interessante se vocês imaginassem que é parecida com a voz da Ximba. Daria um ar mais dramático e assustador.
— Qual é a tua, hein? — disse Margareth, vermelha de raiva — Está me ofendendo a troco do quê?
— Dá um tempo, sua velha!
— Velha? Quem é velha aqui?
Percebi Margareth fechando os punhos para socar a menina, mas para a nossa sorte o Sr. Porrah apareceu.
— O que está acontecendo aqui? — disse ele.
— Esta moça queria me bater, papai! — sua voz ficou doce outra vez.
— Como é que é? — ele olhou para Margareth, espantado.
— É brincadeira dela.
O velho sorriu. Ufa! Foi por pouco.
De repente senti alguém beliscar a minha bunda. Preciso dizer quem foi? Sossega, minha filha, isso dá cadeia!